LIPEDEMA: DESCRIÇÃO, DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO
Content extracted from the book “Victory Against Cellulite” by Dr Roberto Chacur, Ed. AGE, 2023.
Dra. Fernanda Federico Rezende
Dr. Roberto Chacur
Lipedema é uma doença vascular inflamatória caracterizada pelo depósito anormal de gordura, sobretudo nos tecidos subcutâneos dos quadris, das nádegas e dos membros inferiores, de forma crônica, progressiva e com forte caráter hereditário. O lipedema também pode ocorrer nos membros superiores, porém sua presença não é tão comum quanto nos inferiores.
Esse quadro clínico pode ser acompanhado de dor, edema e sensibilidade ao toque nas áreas acometidas. Quando não tratado, o lipedema, em estágios mais avançados, pode evoluir com acometimento dos sistemas linfático e vascular, causando deformidades, redução da mobilidade e dor crônica nos membros inferiores.
O lipedema foi descrito pela primeira vez em 1940 pelos cirurgiões cardiovasculares Dr. Edgar Allen e Dr. Edgar Hines, na Mayo Clinic. Eles
o descreveram como um depósito de gordura nos tecidos subcutâneos das nádegas e membros inferiores acompanhado de edema ortostático.
Com a colaboração de colegas médicos experientes, o Dr. Roberto Chacur reúne neste livro uma abordagem em torno do tema que vai desde a gênese da celulite, o método próprio de avaliar e classificar, as doenças associadas e a modulação hormonal até os tratamentos existentes, o que realmente funciona e por qual motivo o método GOLDINCISION é considerado o padrão ouro.
Ver Capítulos
CAPÍTULO 2 – CLASSIFICAÇÃO DA CELULITE
CAPÍTULO 5 – MODELAMENTO DE GLÚTEOS
CAPÍTULO 6 – TRATAMENTOS INJETÁVEIS PARA CELULITE
CAPÍTULO 7 – LASER-LIPO: TECNOLOGIA INVASIVA
CAPÍTULO 8 – OUTROS TRATAMENTOS PARA CELULITE
CAPÍTULO 9 – EFEITOS BIOESTIMULADORES
CAPÍTULO 10 – INFLUÊNCIA DOS HORMÔNIOS
CAPÍTULO 11 – GOLDINCISION®: UMA ABORDAGEM MULTIFATORIAL NO TRATAMENTO DA CELULITE
CAPÍTULO 12 – MANCHAS PÓS-GOLDINCISION ®
CAPÍTULO 13 – EFEITOS ADVERSOS E INTERCORRÊNCIAS NA GOLDINCISION®
Apesar de descrito há mais de 80 anos, o lipedema ainda é pouco diagnosticado e tratado no Brasil e no mundo, tanto que, somente em 2022, a patologia foi incluída na 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), E F 02.2 Lipedema, BD93.1e Lipo-linfedema (DUDEK; Białaszek; GabrieL, 2021).
Diante disso, neste capítulo, apresentarei o lipedema e minha experiência como cirurgiã vascular no tratamento dessa patologia que ainda é pouco conhecida em nosso meio e é, muitas vezes, confundida com outras condições, como o linfedema, a insuficiência vascular e a obesidade. Para tanto, o capítulo conta com oito seções. Contando a partir da segunda seção, esta apresenta as características gerais da doença.
A terceira descreve os achados clínicos sobre o lipedema. Já a quarta aponta alguns impactos psicológicos dessa patologia. A quinta relata seus estágios e tipos. A seção seis releva a etiologia e a patogênese. As seções sete e oito trazem o diagnóstico e o tratamento. Por fim, têm-se as considerações finais.
CARACTERÍSTICAS GERAIS
O lipedema é uma doença quase exclusiva das mulheres. Há somente dois relatos de lipedema em homens na literatura (Wold, Hines, Allen, 1951; CHEN et al., 2004). Estima-se que no Brasil 12,3% das mulheres possuam lipedema (Amato et al., 2022), ao passo que na Europa essa taxa varia entre 0,06 e 39% (Fife, Maus, Carter, 2010; Schwahn-Schreiber, Marshall, 2011). A prevalência desse quadro em mulheres ocorre porque, em relação aos homens (Bano, 2010), elas apresentam maior quantidade de tecido adiposo subcutâneo e, consequentemente, maior expressão dos hormônios esteroides. Além disso, os hormônios femininos determinam uma distribuição corporal de tecido adiposo característica nas mulheres (Van Pelt et al., 2006; Gavin, Cooper; Hickner, 2013).
A queixa mais frequentemente apresentada em consultório é a dificuldade em perder medida nos quadris e nas pernas, apesar de dieta e exercícios físicos. As pacientes relatam constante desproporção entre as partes superior e inferior do corpo. Apesar da incidência maior
em membros inferiores, o lipedema pode acometer exclusivamente os braços ou se desenvolver concomitantemente neles e nos membros inferiores. As pacientes que sofrem com esse problema apresentam edemas nos membros inferiores que não melhoram mesmo com o repouso noturno, fato que caracteriza o alargamento dos membros pelo depósito de gordura e não por acúmulo de líquidos neles.
Além disso, muitas pacientes queixam-se de dor ao tocar as pernas, principalmente nas laterais das coxas, além do surgimento de equimoses espontâneas. Elas também se queixam de irregularidades nas pernas e nádegas, com presença de celulites (cujo nome técnico sempre reportado é lipodistrofia ginoide). Muitas relatam palpação de nódulos nas pernas, descritos como saco de ervilhas, feijões ou bolinhas de isopor (Meier-Vollrath; Schmeller, 2004). Aproximadamente 50% das pacientes com lipedema têm obesidade (Wold, Hines, Allen, 1951; Harwood, 1996), fato que dificulta o diagnóstico e pode atrasar o tratamento adequado.
Por sinal, na obesidade, a distribuição da gordura corporal é mais homogênea ao longo de todo o corpo, não havendo relatos de dor e equimoses frequentes. Contudo, pacientes obesas e portadoras de lipedema apresentam aumento da gravidade dos sintomas e redução da mobilidade.
Em minha experiência, fadiga, fraqueza muscular e dificuldade de alcançar hipertrofia dos músculos são sintomas reportados pelas pacientes. O lipedema frequentemente se desenvolve no início da puberdade e se agrava em períodos em que há flutuações hormonais, como no uso de anticoncepcionais orais, gravidez, menopausa e reposições hormonais (Meier-Vollrath, Schmeller, 2004). Infelizmente, as pacientes procuram tratamento médico somente quando a doença já está em estágios mais avançados. Para piorar, são comuns relatos de inúmeras tentativas frustradas de perder medidas corporais por meio de dietas restritivas, exercícios físicos de alto impacto, hipertrofia muscular com altas cargas e tratamentos diversos para fibroses e gordura localizada. Muitas relatam uma ou mais lipoaspirações de pernas e quadris, com posterior recidiva da doença e piora das fibroses, principalmente nos quadris.
Quando questionadas se têm algum familiar com quadro semelhante, a maioria das respostas é positiva. Estudos apresentam estimativas
entre 16 e 64% com história familiar positiva autorrelatada. Este fato sugere forte caráter hereditário do lipedema (Suga, 2009; Herbst, 2012; Rudkin, 1994).
ACHADOS CLÍNICOS
A principal característica do lipedema é a presença de alargamento simétrico e bilateral dos membros inferiores, poupando os pés. Essa característica é importante para diferenciar lipedema de obesidade. Na obesidade, os pés são atingidos; no lipedema, não. Dessa forma, pacientes com lipedema apresentam membros inferiores com aspecto de pantalonas ou calças alargadas, sendo possível visualizar um degrau entre os tornozelos e os pés, local em que normalmente o depósito de gordura se cessa (Hild et al., 2010). Nota-se, também, a formação de coxins adiposos anteriormente aos maléolos laterais e o apagamento, por depósito lipídico, dos sulcos dos músculos retromaleolares.
Não há escurecimento ou espessamento da pele (Langendoen, 2009), exceto quando o lipedema é acompanhado de linfedema ou de insuficiência venosa. Frequentemente, as pacientes apresentam dor à palpação das áreas acometidas, principalmente em laterais das coxas e dos tornozelos. Elas também relatam piora álgica nos períodos menstruais (Woodliffe, 2013). Há ausência do sinal de Godet. Ademais, são comuns equimoses puntiformes ao longo dos membros inferiores, sem histórico de traumas conhecidos e telangiectasias em laterais das coxas (Ourke, Langford, White, 2015).
O lipedema desenvolvido exclusivamente nos braços é muito raro. Mais frequentemente, esse tipo de lipedema acomete não só os braços,
mas também a poupa, os antebraços e, simultaneamente, os membros inferiores. Em estudo com 144 pacientes (Herpertz, 1997), verificou-se que 31% de pacientes têm lipedema em membros inferiores e braços e somente 3% exclusivamente nos braços.
Com a progressão da doença, coxins gordurosos são formados medialmente aos joelhos, causando o afastamento dos pés, o que é compensatório ao desnível medial dos joelhos. Tal característica, se agravada progressivamente, causa redução significativa da mobilidade das pacientes (Stutz, Krahl, 2009).
Outra característica comum no lipedema são queixas álgicas, o que fez com que o lipedema ficasse conhecido como síndrome da gordura dolorosa (Allen, Hines, 1940). Nesse sentido, queixas comuns são dor à dígito-pressão, peso e desconforto. Também é normal a queixa de edema leve a moderado com pouca melhora ao elevar os membros inferiores, porém com melhora significativa dos sintomas álgicos com repouso. Estudo (Schmeller, Meier-Vollrath, 2008) com 50 pacientes portadoras de lipedema estágio II mostrou que os níveis de dor reportados por essas mulheres foram semelhantes aos de pacientes portadores de dor crônica. Nesse estudo, Schmeller e Meier-Vollrath (2008) relatam que a forma pela qual as pacientes com lipedema mais intensamente se referiram à dor foi com palavras como “pesado, exaustivo, extenuante, violento”. Isso sugere um quadro álgico mais impactante na vida das pacientes com lipedema.
IMPACTOS PSICOLÓGICOS DO LIPEDEMA
Pacientes com lipedema são muitas vezes consideradas gordas, bem como sofrem com diagnósticos errados, como linfedema e insuficiência venosa crônica. Esses diagnósticos errados levam a tratamentos falhos e geram angústia e frustração nelas. Muitas se submetem a dietas extremamente restritas, usam diuréticos excessivamente, realizam exercícios físicos de alta intensidade e mesmo assim não conseguem perder medidas nas pernas.
Outras muitas são desnecessariamente submetidas a cirurgia de varizes. Várias não toleram as terapias compressivas indicadas para quadros de insuficiência venosa crônica e linfedema. Como se não bastasse, frequentemente atendo em consultório pacientes portadoras de lipedema sem diagnóstico prévio e que já se submeteram a inúmeras lipoaspirações, com resultados insatisfatórios. Elas apresentam fibroses profundas e recidiva da doença pouco tempo após os procedimentos.
Pacientes ainda relatam dificuldade em usar botas de cano longo. Também usam frequentemente roupas de tamanhos diferentes, pequena (P) na parte superior e média (M) ou grande (G) na parte inferior do corpo. Elas dizem que sonham usar shorts curtos, mas não o fazem pelas fibroses e irregularidades nas coxas.
A frustração e o julgamento de pessoas que desconhecem a doença levam essas pacientes a desenvolverem quadros de bulimia nervosa,
anorexia e pseudossíndrome de Barterr (Foldi E., Foldi M., 2006). Essas mulheres precisam ser acolhidas e ouvidas; para isso, muitas vezes é necessária a indicação de psicoterapia adjuvante.
ESTÁGIOS DO LIPEDEMA
O lipedema é classificado em estágios, que vão do I, II, III ao IV, de acordo com a gravidade da doença. Esse estadiamento proposto por Meier- -Vollrath e Schmeller (2004) classifica a gravidade da doença. O estágio I é descrito como pele normal com alargamento da hipoderme. No estágio II, há irregularidade na pele e no tecido adiposo, com formação de grandes montes de tecidos não encapsulados. O estágio III apresenta espessamento e endurecimento do tecido subcutâneo, presença de nódulos e formação de grandes coxins gordurosos protrusos e aparentes, especialmente nas coxas e em volta dos joelhos.
O estágio IV é o mais avançado da doença, com a presença de edema linfático associado ao lipedema, chamado de linfolipedema. Contudo, a categorização dos estágios por Meier-Vollrath e Schmeller (2004) não dá o prognóstico de evolução para lipolinfedema. Esse estágio pode progredir gradualmente ou subitamente (Fife, Carter, 2009). Nesse sentido, apesar de ainda pouco especificados, muitos fatores podem ser gatilhos para o desenvolvimento do linfedema secundário, sendo o principal e mais comum deles a obesidade.
O lipedema pode ser classificado de acordo com a área de acometimento no corpo. São cinco tipos diferentes de padrão de depósito de
gordura. Alguns pacientes podem ser classificados em mais de um tipo.
O tipo 1 acomete pelve, glúteos e quadril. Já o tipo 2 atinge dos glúteos aos joelhos, com protrusão de gordura dobrada na parte interna do joelho. O tipo 3 envolve a região dos glúteos aos tornozelos, enquanto o tipo 4 acomete exclusivamente os braços. Por fim, o tipo 5 atinge somente a perna inferior.
Foldi E. e Foldi M. (2006) apontam dois principais fenótipos do lipedema: o colunar e o lobar. O primeiro, e o mais comum, é caracterizado
pelo aumento das proporções das extremidades inferiores com irregularidades cônicas sequenciais. O lobar é mais raro e se caracteriza pela presença de grandes protuberâncias de gordura que se dobram sobre os quadris, membros inferiores e, por vezes, inclusive, nas porções superiores dos braços.
ETIOLOGIA E PATOGÊNESE
A etiopatogenia do lipedema ainda não é clara. A esse respeito, várias teorias têm sido conjecturadas; uma delas relaciona o desenvolvimento do lipedema a um distúrbio do eixo hormonal feminino. Observa-se que o lipedema se desenvolve no início da puberdade (Mayes, Watson, 2004), momento em que há a atuação do estrogênio nos tecidos adiposos, por meio dos receptores de estrogênio (Herbst et al., 2015). Desse modo, acredita-se que o estrogênio possa ter papel importante na formação de tecido adiposo e outros tecidos que apresentam receptores de estrogênio (Shin et al., 2011). Portanto, uma possível alteração no padrão dos receptores de estrogênio e até mesmo uma falha na responsividade central podem justificar a distribuição anormal de gordura em indivíduos predispostos a isso, assim como a dificuldade que as pacientes com lipedema apresentam em perder gordura ginecoide e dos braços (Herbst, 2012).
Outra teoria, estudada por Földi M. e Földi E. (2006), alvitrou que a microangiopatia no tecido gorduroso aumenta a permeabilidade capilar e consequentemente aumenta o extravasamento de proteínas, causando fragilidade capilar e aumento de equimoses. Os autores observaram também que a diminuição do reflexo venoarterial, presente no lipedema, está associada ao aumento da formação de equimoses e hematomas (Szolnoky et al., 2008). Dessa forma, a hipóxia tecidual presente no lipedema induz a angiogênese, que é considerada patológica pela fragilidade desses novos capilares formados. Como o fator de crescimento endotelial vascular é um dos que controlam a angiogênese, encontram-se níveis anormalmente elevados desse fator de crescimento no lipedema (Frank, 1994). Altas taxas de malonil dialdeído e proteínas carbonilas (Zhao et al., 2003) foram encontradas nos adipócitos cronicamente inflamados, o que evidencia estresse oxidativo crônico e peroxidação lipídica acelerada nos tecidos lipedematosos (Knudsen, 2008).
Suga et al. (2009) demonstraram que o tecido lipedematoso tem adipócitos de formas mais variadas, isto é, maiores e com macrófagos ao
redor em comparação aos tecidos adiposos normais. Os autores verificaram também, em estudos imuno-histoquímicos, a presença de adipócitos necróticos, com proliferação de células-tronco. Tal quadro pode gerar adipogênese, a qual pode gerar hipóxia similar à encontrada nos tecidos dos obesos, resultando em necrose e mobilização de macrófagos nessas áreas. Macrófagos CD68+ e células positivas para CD34 e KI67 foram encontrados nos adipócitos necróticos no tecido lipedematoso. Esses resultados reforçam a hipótese de que o ambiente isquêmico e necrótico com intensa atividade fagocitária é resultado da rápida adipogênese nos tecidos de lipedema.
Crescenzi et al. (2018) mostraram em um protocolo multimodal de ressonância nuclear magnética em mulheres com lipedema que há aumento na concentração de sódio, tanto no tecido adiposo quanto no muscular. Esses níveis altos podem ser justificados pelas depurações vascular e linfática ineficientes ou pelo aumento da deposição do sódio na inflamação crônica do lipedema. Os níveis aumentados de sódio nos músculos podem justificar a fadiga crônica e a força muscular reduzida encontradas nas pacientes. O estudo (Crescenzi et al., 2018) ainda sugere que o sódio tecidual pode ser importante marcador inflamatório da doença.
Uma etiologia genética é fortemente sugerida no lipedema, com 64% de história familiar autorrelatada por mulheres portadoras da doença
(Herbst, 2012). Um estudo em 2010 avaliou seis famílias com mais de três gerações com lipedema. Foi encontrado padrão com herança autossômica dominante com penetrância incompleta limitada ao sexo (Criança et al., 2010).
Michelini et al. (2020) sugerem que a ação da aldo-ceto-redutase (1C1) na regulação dos hormônios esteroidais está diretamente relacionada ao acúmulo de tecido gorduroso no subcutâneo. Resultados também apontam que a mutação do gene 1C1 pode estar relacionada com o desenvolvimento do lipedema devido à falha na inativação da progesterona, regulando indiretamente a adiposidade da gordura subcutânea (Michelini, 2020). Como resultado, esse é o primeiro gene candidato a ser associado ao lipedema não sindrômico.